Karinny Paklandd

Dos silêncios nossos de cada dia

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Noite de gala do audiovisual franco-rochense e plateia cheia. Artistas, colaboradores, amigos e munícipes prestigiam o fazer artístico local apresentado no cinema da cidade. Cá dentro, bocas cheias de pipocas, olhos e ouvidos atentos e arte por todo lado.

Do lado de fora, ela tenta entrar. Aos gritos, requer seu direito de participação no evento; mostra documentos, argumenta fortemente, ameaça chamar a polícia e exige o cumprimento da medida protetiva que possui. Os seguranças contratados e um advogado vetam, impassíveis, sua entrada.

O documentário sobre arte e loucura rola no telão e ela enfim fura o bloqueio e invade. Aos brados, faz seu protesto contra o diretor do curta; fala de abusos, ameaças, agressões e é violentamente retirada pela segurança… outra mulher.

A “loucura” pula da tela e se instala no recinto: caras espantadas, um acusado mudo e raras vozes se levantam em defesa da escorraçada. Um recorte da realidade de mulheres vítimas de violência, geralmente lidas como “loucas” e desacreditadas pelos silêncios dos que se esquivam… e consentem a violência.

A polícia dá jeito e ela entra, senta e aprecia o final das exibições. Na saída, não há 300 metros que impeçam o encontro e ele faz ameaças sutis ao passar por ela. Ela não se intimida, tem a coragem de quem mostrou a que veio em alto e bom som.

Mas a corajosa também é frágil, fala de solidão, desamparo e sobre a saga que trilha para tentar se defender e preservar a cria. Conta o quanto a justiça lhe parece injusta e o quanto as pessoas a decepcionam, principalmente as mulheres, ignorando sua dor.

Para sua constante defesa – e comprovação de sanidade – mantém na bolsa todos os documentos já lavrados: boletins de ocorrência, decisões judiciais, relatórios e atestados; carrega, também, o peso invisível de ser mulher.

Tem ciência dos desconfortos que causa, mas não se importa mais. Um escândalo parece nada perto dos processos que sua pouca idade coleciona: são 28, um para cada ano de vida. É acusada de tudo, de perseguir, acusar, constranger, ameaçar… de existir, mas segue resistindo como dá, só de pirraça, porque sabe sobre o privilégio dos que só precisam nascer no gênero certo para serem respeitados.

É confortável não estar o tempo todo na boca de leões e sob dedos em riste, e deve ser cansativo e doloroso também ter de morder o tempo todo; a violência é cíclica, o rompimento é um parto difícil e as cicatrizes são inevitavelmente eternas.

Nesta noite, mulheres brilham nas telas, mostrando arte, competência criativa e sensibilidade, mas muitas, neste mesmo intervalo, estampam as páginas policiais, vítimas da violência e do silenciamento de outros.

Ela grita buscando ser ouvida; toda explosão carrega um ápice de silêncio preso na garganta. Toda voz ignorada lança um carma com a certeza de que calar-se não protege, nem ao outro e nem a si. Todo silêncio cultivado pela omissão há, um dia, de ser castigado… com a dor na pele ou na consciência. Considerar a dor do outro também é dar sentido em estar vivo.

Que elas continuem a brilhar na arte e que não sejam invisíveis na vida. O brinde é por corpos mais presentes e olhares mais atentos… para além do que a vista alcança.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Conexão Juquery 
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